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TEXTOS CRÍTICOS

VÃOS

O movimento da vida é o movimento da criação

Texto curatorial da exposição "Como desorganizar um organismo?" (2023)

 

Lucas Dilacerda

Crítico e curador

 

Há bilhões de anos, a vida na Terra se manifesta em infinitas formas. Todas elas são feitas de uma mesma matéria plástica, que se elastica e se remodela em cada forma de vida singular. Uma energia vital atravessa todos os seres, da rocha à montanha, do rio à floresta, da planta ao animal, da sociedade à galáxia. A vida é essa força germinativa de criação que se ramifica em infinitas bifurcações.

 

A exposição "Como desorganizar um organismo?", do artista visual plantomorpho, investiga a relação entre vida, ciência e imaginação. A exposição é um organismo de imagens que nos convida a experimentá-la no borramento das fronteiras entre biológico e social; natureza e cultura; verdade e ficção; realidade e imaginação.

 

plantomorpho transforma a ciência em uma poética. O artista se apropria do repertório de imagens produzido pela ciência e o transforma em uma fabulação poética. Nas obras de plantomorpho, a botânica, a zoologia, a anatomia, a geologia e a astronomia se tornam lentes sensíveis para olhar o mundo, promovendo assim um reencantamento do concreto.

 

As imagens de plantomorpho são úteros grávidos de si, que carregam o devir, a larva e o ovo de uma nova espécie desconhecida. Os seres que nascem desse útero são híbridos, quimeras, que remetem desde as ilustrações do bestiário medieval, aos livros de anatomia e até aos monstros de ficção científica.

 

Os seres de plantomorpho são amálgamas embrionárias, são nuvens de possibilidade que se atualizam de maneira errante e imprevisível. Esses seres habitam uma zona de indiscernibilidade entre o humano, o animal, o vegetal e o mineral, e que estão sempre em transição com a matéria para outras formas de vida.

 

O desenho é um traço importante no processo de criação do artista. A linguagem do desenho requer um mergulho no tempo dilatado, e em um mundo do imperativo da velocidade, desenhar se torna um ato político de resistência. O desenho de plantomorpho é o próprio desenho das linhas da vida, no seu movimento ininterrupto de criação de novos seres. Desenhar é percorrer o caminho que o fluxo da vida nos leva para o nascimento de uma nova plantomorphia.

Ecologia da sensibilidade 

Texto curatorial da exposição "Fotossíntese" (2023)

 

Lucas Dilacerda

crítico e curador

 

“Fotossíntese” é uma exposição individual do artista plantomorpho, que apresenta as semelhanças entre os processos fotográficos que ocorrem na câmera e os processos vegetais que ocorrem nas folhas, chamado de fotossíntese. Para isso, o artista retoma os procedimentos químicos utilizados nos primórdios da fotografia, para experimentar e criar imagens fotográficas sem câmera.

 

A exposição apresenta uma série de experimentos fotográficos realizados pelo artista, que utiliza seiva vegetal, óleo mineral, fogo, calor e luz - que são elementos básicos na fotografia analógica e na fotossíntese das plantas - para criar imagens fantásticas, abstratas, quase rupestres, que nos fazem lembrar que a essência da fotografia não é a câmera fotográfica, mas sim o desenho com a luz que reflete o nosso mundo e a natureza.

 

Além disso, o artista problematiza a moderna separação entre humano e natureza, e busca conscientizar as pessoas da importância do desenvolvimento de uma sensibilidade vegetal, que se faz no compromisso ético, estético e político de co-habitação com a natureza. Nesse processo de conscientização ambiental, a fotografia se transforma em um importante canal de expressão e de sensibilização das pessoas sobre as temáticas ecológicas e sociais.

 

Ao cruzar a fronteira que separava o humano e a natureza, a fotografia e o desenho, a imagem fotográfica e fotossíntese das plantas, a poética de plantomorpho atualiza um tema clássico da História da Fotografia Cearense, que são as fotografias de paisagem e de natureza, presentes nas imagens de Fernando Jorge, Sheila Oliveira, Filipe Camilo etc. renovando assim uma tradição a partir de um olhar contemporâneo sobre a intersecção fabular entre arte e ciência, entre escrita de luz e desenho, entre fotografia e fotossíntese.

 

 

Pedagogia das sombras

 

plantomorpho

Pedagogia das sombras abrange uma série de experimentos em desenho que iniciei em 2020, utilizando a sombra como recurso gráfico, um meio a serviço da própria replicação ou deformação da imagem, no seu sentido físico e também representacional. A sombra, enquanto ente físico carrega todo um devir poético quando de encontro com a (in)disciplina do desenho.

Ela é também a forma mais primitiva de fabricar uma imagem: nela está a origem da fotografia, da gravura e do cinema. A sombra é uma marca primordial, o simulacro por excelência, como nos daria a conhecer o mito da caverna de Platão.
 

Sabemos que o visível se gesta por meio do contraste fundamental entre luz e sombra: toda imagem é portanto projeção do real. Toda imagem é luz e sombra do real. Por meio desses experimentos com desenho chego a conclusão de que a sombra possui uma solidez, um peso, para além da condição perceptiva do plano. Ela possui uma plasticidade, embora não seja palpável ou durável. Embora exista apenas em oposição dialética à luz, a sombra possui ainda uma existência autoevidente, no entanto, também ilusória, a ponto de se converter num signo pictórico. A partir dessa premissa comecei a me aventurar nesse jogo de lançar sombra sobre as imagens, a fim de inventar ou desvendar uma outra pedagogia – uma pedagogia de sombras.

 

O método aqui é simples: dissimular, velar, encobrir, rasurar, deformar imagens; comprimir, esticar, ampliar ou reduzir o plano; criar recortes, interposições, dobras, sobreposições, a fim de converter uma imagem bidimensional em volume e vice-versa. São procedimentos em que exploro a relação constitutiva entre matéria e representação, seja por meio da justaposição entre a imagem física e a imagem luz projetada ou por meio da aproximação entre o desenho manual e os processos de pós-produção digital. Desta maneira crio assim alusões entre processos distintos, pondo em dúvida a natureza descritiva do plano bidimensional ou mesmo afirmando-o de maneira metalinguística.


O fio condutor desses experimentos é a decalcomania, que se dá por meio de dois processos distintos: o uso da sombra como meio de gerar um signo gráfico, resultando também numa projeção, um duplo. O segundo processo é o uso da reprodução de figuras
de cunho científico, extraídas de livros e enciclopédias, e de procedimentos que intervém sobre essas imagens, gerando outros tipos de associações, reformulações, releituras, paródias, alusões
e citações. O livro não é um objeto escolhido ao acaso: ele foi e continua sendo um dos principais dispositivos a favor da difusão do conhecimento (científico). O livro é um mediador do conhecimento que temos do mundo e da natureza. Tal como a sombra projetada, que é aqui utilizada como uma forma ideal, platônica, o livro é afirmado também como impressão, como marca, cópia, fác-símile; um instrumento para pensar e articular a relação fundamental entre o real e a linguagem, o real e a imagem. Uma dinâmica se afirma assim na relação entre verdade objetiva (ou verdade científica) e a “mentira” postulada pelas imagens: figuras científicas corrompidas de sua função, e agora recolocadas em um jogo imaginário que questiona o próprio fundamento da percepção, e evidentemente, da noção de verdade.


A sombra se torna em meu processo um meio para alcançar o visível, ou melhor, uma ferramenta que opera sobre o visível, e que reconfigura nosso entendimento e percepção acerca da natureza.

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